sábado, 18 de abril de 2009

Fogo de Santelmo

Não lembro qual foi a última vez que voei com meu pai, com certeza já faz mais de dez anos que isso aconteceu ou bem mais. Era sempre uma diversão estar em um vôo comandado por ele, as comissárias eram demasiado simpáticas e podíamos passar algum tempo na cabine - na maioria das vezes era a viagem inteira.

Apesar de ter a maior parte das lembranças de infância mesclada e borrada, um episódio desses ficou intacto em minha memória: o do Fogo de Santelmo. Devia ter uns dez ou onze anos, era um vôo de longa distância - talvez para o exterior. Era tarde da noite quando meu pai, o co-piloto e eu estávamos na cabine e começou uma forte tempestade - não lembro se tinha mais alguém junto. Passou um tempo até que o avião começou a balançar. Depois de alguns raios e trovões, ele (meu pai) me chamou para perto do parabrisa e esticou o braço esquerdo, grudando o punho fechado no vidro com o cotovelo apontado para baixo. Seguiu-se um forte clarão e uma luz azul-esverdeada atravessou o painel subindo por seu braço, fazendo-o parecer um para-raio sobrenatural.

Sempre guardei essa recordação com muito carinho. Cheguei a dividir o causo algumas vezes, extasiada, com amigos próximos - acho que foi uma das coisas mais íncríveis que já vi na vida. Ainda mais porque era criança e aquilo tudo parecia muito mágico. Ainda é na verdade, mas hoje sei que se trata de um fenômeno meteorológico, causado por uma descarga muito forte que ioniza o ar em um campo elétrico, e produz uma forte luz - o plasma luminoso. Tem a questão da diferença atmosférica, formato do campo envolvido na situação (curvaturas), a alta voltagem no ar entre as nuvens e o solo - e o ápice da experiência, o gran finale: quando a descarga rompe as moléculas de ar e faz o gás brilhar. CABRUM!

Mas é na arte e na mitologia que encontramos as leituras mais deleitosas.

A aparição de somente um fogo, na Grécia antiga, era chamada de Helena. Caso viessem dois, eram chamados de Castor e Pólux, os irmãos gêmeos que passavam metade do ano do plano infernal e a outra metade no Olimpo. Já foi assunto de Shakespeare, Herman Melville e Camões, que escreve no Canto V de Os Lusíadas:

15 «Assi, passando aquelas regiões
Por onde duas vezes passa Apolo,
Dous Invernos fazendo e dous Verões,
Enquanto corre dum ao outro Pólo,
Por calmas, por tormentas e opressões,
Que sempre faz no mar o irado Eolo,
Vimos as Ursas, a pesar de Juno,
Banharem-se nas águas de Neptuno.

16 «Contar-te longamente as perigosas
Cousas do mar, que os homens não entendem,
Súbitas trovoadas temerosas,
Relâmpados que o ar em fogo acendem,
Negros chuveiros, noites tenebrosas,
Bramidos de trovões, que o mundo fendem,
Não menos é trabalho que grande erro,
Ainda que tivesse a voz de ferro.

17 «Os casos vi, que os rudos marinheiros,
Que têm por mestra a longa experiência,
Contam por certos sempre e verdadeiros,
Julgando as cousas só pola aparência,
E que os que têm juízos mais inteiros,
Que só por puro engenho e por ciência
Vêm do mundo os segredos escondidos,
Julgam por falsos ou mal entendidos.

18
«Vi, claramente visto, o lume vivo
Que a marítima gente tem por santo,
Em tempo de tormenta e vento esquivo,
De tempestade escura e triste pranto.
Não menos foi a todos excessivo
Milagre, e cousa, certo, de alto espanto,
Ver as nuvens, do mar com largo cano,
Sorver as altas águas do Oceano.


...

Dia 20 agora embarco para Paris, onde vou ficar três dias antes de seguir para o subcontinente indiano. Por sorte ou conspiração dos astros, a reserva que tinha na Air France caiu e meu pai foi escalado de última hora para voar. Ele fará o vôo da TAM do mesmo dia 20 para a capital francesa.

Será um início de viagem mais que especial.


2 comentários:

enfim ...